2. Fundamentalismo
“Este vocábulo é relativamente novo na língua portuguesa.
(…) A palavra “fundamentalismo” aparece ligada a ideias religiosas. Um dos primeiros dicionários portugueses a darem-lhe honras de entrada foi o da Academia das Ciências de Lisboa que define “fundamentalismo” desta maneira: ‘Corrente religiosa, de tendências conservadoras que defende fidelidade total à interpretação literal das Escrituras’ (sublinhados nossos).
A definição está certa, mas a nosso ver, incompleta. Originariamente aplicava-se ao movimento que se desenvolveu nos círculos protestantes dos Estados Unidos da América, a seguir à Primeira Grande Guerra, em defesa dos “fundamentos” da doutrina tradicional da Reforma, particularmente o axioma da veracidade da Bíblia, interpretada literalmente. E o movimento com este nome na língua inglesa – fundamentalism – apareceu e desenvolveu-se como reacção a tendências chamadas “modernistas” de interpretação da criação do mundo e do homem, (como, por exemplo as de Darwin). Nessa época nos E.U. primeiro e no resto do mundo depois, tornou-se clássica a polémica religiosa entre “modernismo” e “fundamentalismo”, entendido este, de forma genérica, como fidelidade intransigente à interpretação tradicional protestante (ou seja) interpretação literal das Escrituras.
O vocábulo surgiu assim para designar um conceito novo, de índole caracteristicamente luterana.
Mas como todas as palavras de uma língua viva, também esta estava sujeita ao conhecido fenómeno linguístico da evolução semântica. E, a breve trecho, deixou de ser um conceito luterano para, mais genericamente, passar a ser um conceito religioso: a defesa intransigente e cega da interpretação literal e acrítica de textos sagrados de qualquer religião.
E foi assim que alguns Papas, algumas instituições ou alguns momentos históricos da Igreja Católica foram apelidados de “fundamentalistas”. Restaria saber – mas agora não nos vamos ocupar disso – se a atribuição do epíteto não resultara, ela própria, de uma visão “fundamentalista”.
O conceito foi alastrando de religião para religião e rapidamente chegou ao tão triste e assustadoramente célebre “fundamentalismo islâmico”. Mas aqui com uma força avassaladora nova: é que se trata de um “fundamentalismo” tão fundamentalista (passe a redundância) que extravasa do plano religioso para o político, na medida em que não há diferença entre lei religiosa e lei civil dado que esta é substituída por aquela, levando a que a própria sociedade civil adopte atitudes e comportamentos fundamentalistas.
Mas a evolução semântica não parou aqui nas fronteiras do religioso. E o conceito de “fundamentalismo” passou a aplicar-se a outros textos e doutrinas que nada têm de religiosos. Ou bem pelo contrário.
É assim que podemos hoje dizer que o leninismo é uma interpretação fundamentalista do marxismo. Ou que o maoísmo é, por sua vez, uma interpretação fundamentalista do marxismo-leninismo. Como é também assim que hoje se pode falar de “fundamentalismo económico” (vulgo economicismo) ou “fundamentalismo capitalista” ou “fundamentalismo liberal”. Ou no “fundamentalismo” que pode atingir qualquer doutrina: religiosa, política, filosófica, literária, artística ou moral.
Resta de tudo isto – e qualquer que seja o ângulo de abordagem – a permanência da intransigência, da interpretação literal e da ausência crítica.
Assim são adoptadas atitudes e desenvolvidos comportamentos baseados no seguimento cego e fidelíssimo de doutrinas sem atender às circunstâncias da época, às subtilezas da linguagem, à sua razão de ser, ao seu enquadramento cultural, isto é, sem a tentativa de qualquer interpretação e assimilação.
“Fundamentalismo” é, assim, a leitura primária de anteriores leituras primárias de um texto, qualquer que ele seja; e o procedimento primário que dessa leitura resulta. Nem a leitura nem o procedimento consequente beneficiam de uma centelha de inteligência, de lucidez, de subtileza, de conhecimento ou de capacidade crítica. Ou mesmo de uma gota de bondade.
Em resumo: “fundamentalismo” é o reino da estupidez. Malévola, as mais das vezes.”
Transcrito, com a devida vénia, do semanário católico “A Ordem” – nº 34 de 24/01/2008 – e da autoria de M. Moura-Pacheco.
“Este vocábulo é relativamente novo na língua portuguesa.
(…) A palavra “fundamentalismo” aparece ligada a ideias religiosas. Um dos primeiros dicionários portugueses a darem-lhe honras de entrada foi o da Academia das Ciências de Lisboa que define “fundamentalismo” desta maneira: ‘Corrente religiosa, de tendências conservadoras que defende fidelidade total à interpretação literal das Escrituras’ (sublinhados nossos).
A definição está certa, mas a nosso ver, incompleta. Originariamente aplicava-se ao movimento que se desenvolveu nos círculos protestantes dos Estados Unidos da América, a seguir à Primeira Grande Guerra, em defesa dos “fundamentos” da doutrina tradicional da Reforma, particularmente o axioma da veracidade da Bíblia, interpretada literalmente. E o movimento com este nome na língua inglesa – fundamentalism – apareceu e desenvolveu-se como reacção a tendências chamadas “modernistas” de interpretação da criação do mundo e do homem, (como, por exemplo as de Darwin). Nessa época nos E.U. primeiro e no resto do mundo depois, tornou-se clássica a polémica religiosa entre “modernismo” e “fundamentalismo”, entendido este, de forma genérica, como fidelidade intransigente à interpretação tradicional protestante (ou seja) interpretação literal das Escrituras.
O vocábulo surgiu assim para designar um conceito novo, de índole caracteristicamente luterana.
Mas como todas as palavras de uma língua viva, também esta estava sujeita ao conhecido fenómeno linguístico da evolução semântica. E, a breve trecho, deixou de ser um conceito luterano para, mais genericamente, passar a ser um conceito religioso: a defesa intransigente e cega da interpretação literal e acrítica de textos sagrados de qualquer religião.
E foi assim que alguns Papas, algumas instituições ou alguns momentos históricos da Igreja Católica foram apelidados de “fundamentalistas”. Restaria saber – mas agora não nos vamos ocupar disso – se a atribuição do epíteto não resultara, ela própria, de uma visão “fundamentalista”.
O conceito foi alastrando de religião para religião e rapidamente chegou ao tão triste e assustadoramente célebre “fundamentalismo islâmico”. Mas aqui com uma força avassaladora nova: é que se trata de um “fundamentalismo” tão fundamentalista (passe a redundância) que extravasa do plano religioso para o político, na medida em que não há diferença entre lei religiosa e lei civil dado que esta é substituída por aquela, levando a que a própria sociedade civil adopte atitudes e comportamentos fundamentalistas.
Mas a evolução semântica não parou aqui nas fronteiras do religioso. E o conceito de “fundamentalismo” passou a aplicar-se a outros textos e doutrinas que nada têm de religiosos. Ou bem pelo contrário.
É assim que podemos hoje dizer que o leninismo é uma interpretação fundamentalista do marxismo. Ou que o maoísmo é, por sua vez, uma interpretação fundamentalista do marxismo-leninismo. Como é também assim que hoje se pode falar de “fundamentalismo económico” (vulgo economicismo) ou “fundamentalismo capitalista” ou “fundamentalismo liberal”. Ou no “fundamentalismo” que pode atingir qualquer doutrina: religiosa, política, filosófica, literária, artística ou moral.
Resta de tudo isto – e qualquer que seja o ângulo de abordagem – a permanência da intransigência, da interpretação literal e da ausência crítica.
Assim são adoptadas atitudes e desenvolvidos comportamentos baseados no seguimento cego e fidelíssimo de doutrinas sem atender às circunstâncias da época, às subtilezas da linguagem, à sua razão de ser, ao seu enquadramento cultural, isto é, sem a tentativa de qualquer interpretação e assimilação.
“Fundamentalismo” é, assim, a leitura primária de anteriores leituras primárias de um texto, qualquer que ele seja; e o procedimento primário que dessa leitura resulta. Nem a leitura nem o procedimento consequente beneficiam de uma centelha de inteligência, de lucidez, de subtileza, de conhecimento ou de capacidade crítica. Ou mesmo de uma gota de bondade.
Em resumo: “fundamentalismo” é o reino da estupidez. Malévola, as mais das vezes.”
Transcrito, com a devida vénia, do semanário católico “A Ordem” – nº 34 de 24/01/2008 – e da autoria de M. Moura-Pacheco.
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