sábado, março 28, 2020

'Novos Contos da Montanha'


A Lucinda? - perguntou o Pedro, coberto de suor, lívido, a acabar de sair de uma modorra de morte.
  • Está boa... respondeu a mãe, com a naturalidade que pôde.
  • E porque não vem cá?
  • Isto pega-se, filho. Ela bem queria; eu é que não consinto...
    Uma onda de tristeza, que lhe embaciou a imagem da namorada, atravessou os olhos febris do rapaz. Depois, exausto do esforço de vir à tona do poço, desceu as pálpebras e caiu na sonolência em que vivia há dias.
    No princípio da epidemia, de ouvido atento, ia vigiando o mundo através do dobrar do sino. O som a entrar no quarto abafado e ele a inquirir, inquieto:
  • Quem foi, minha mãe?
  • O Belmiro.
  • O pai ou o filho?
  • O pai.
Cuidadosa, a Felisberta varria implacávelmente todos os espinhos que pudessem magoar as justas esperanças da mocidade. (…) E docemente ia matando os velhos e as velhas da freguesia, para deixar ao doente, intactas, as fontes da alegria.
  • E hoje? - Queria ele saber de novo, sôfrego de uma palavra que fosse a garantia da imunidade dos seus vinte anos.
  • O Pinto.
A única distinção que o sino fazia era entre homens e mulheres. E bastava à Felisberta ter debaixo da língua um nome de sessenta invernos, capaz de justificar as três ou as cinco badaladas, para aquietar aquele atento desassossego.
O mal, porém, alastrou de tal modo que se tornou impossível tocar a todos os defuntos. Além disso, o sinal fatídico acabara por ser um aviso a cada moribundo. E o prior, rogado e convencido, mandou calar o bronze.
(...)

'Renovo' - (excerto)
Miguel Torga

Nota: Esta transcrição foi um pretexto para lembrar a ´pneumónica', epidemia que há cerca de cem anos flagelou o país. E também revisitar os belos contos de Torga.

   https://www.youtube.com/watch?v=yJAOZ4bPGMA

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