“Progressismo" e "tradicionalismo " são inimigos da tradição. Para estes ela constitui pedra de tropeço e para aqueles pedra de escândalo.
Pe. ANTÓNIO FAUSTINO
Correr o olhar neste fim de década pela vida da Igreja leva-nos a aperceber que já passaram os momentos temerosos e crepusculares do pós-Concílio. A clarividência dos factos mostra também ao mesmo olhar que os tempos são muito outros na história do mundo.
Uns desfeitos, outros caídos em desgraça ou em vias de drásticas reformas, retiraram-se os formidáveis mitos que moldaram o cenário do grande teatro do mundo e preencheram o imaginário cultural e escatológico de uma multidão de consciências. Quem acredita hoje nas utopias do futuro em promessa no discurso das ideologias e dos humanismos demiúrgicos?
Mas nem por isso o esvaziamento ideológico-doutrinário dos espíritos e da actividade humana despertou o homem para a procura de vias mais consistentes e positivas em ordem a decifrar o sentido profundo do seu ser e do seu estar no mundo. E, paradoxo dos paradoxos, esse sentido parece escapar-lhe ainda mais na medida em que a ciência e a técnica, entregues a uma pseudo-autonomia, seguem a lógica de uma omnipresença tão sedutora e agressiva como asfixiante. De funcional e auxiliadora, a sua presença oferece-se agora aos homens como um poderoso instrumento apto a toda a manipulação da liberdade e do poder criador, como um transfert diabólico de todo o desejo.
Infelizmente a dignidade teórica da ciência pouco ou nada tem contribuído para fazer avançar o espírito e o pensamento na interrogação do enigma antropológico e existencial. Tomar consciência desta falência teórica e cognitiva, é romper com aquela rede de um "universo fechado" em que a modernidade encerrou a alma humana do mesmo passo que lhe abobadava os céus duma finitude absoluta, auto-transcendente, naturalmente divina. Esta mentalidade ignora tanto o que "no homem ultrapassa o homem" quanto o universo da finitude oferecido ao infinito progresso da ciência e da vontade humana não atinge o misterioso mas latente sentido do ser das coisas.
Com palavras do grande teólogo H. de Lubac, podemos definir-lhe o carácter essencial, o espírito de fundo. " A modernidade, indicou ele um dia, é o triunfo da finitude, e a certeza adquirida de que o homem pode enfim destruir-se...
A modernidade refuta o mistério. Conhecerá sempre mais, mas na verdade não compreenderá mais coisa alguma " (H. de Lubac, "Viaggio nel Concilio", in 30 Giorni, 7 1985).
Repelido o mistério, segue-se necessariamente a recusa da dimensão da fé, da religião e de uma ideia de Revelação. Percebe-se agora melhor porque razão o fundo espiritual do pensamento moderno se opõe ao paradigma "antigo", sob quaisquer das suas manifestações - de natureza mítica, sapiencial, filosófica, religiosa. O mesmo é dizer por que é que a infinda acumulação de certezas no suceder, reestruturar e elaborar de teorias não faz nascer o sentimento de nenhuma verdade viva.
O sentido de onde as diferentes formas de realidade são originárias, e o sentido absoluto do ser do homem e do seu destino, só pode brotar da profundeza intocada e sempre disponível do Mistério. É nele que radica a natureza da Tradição e das tradições. Superficialmente se atende nela à cadeia que nos remete para o passado. Ora mais que ligar-nos a um "ontem" ela traz-nos o que é "eterno". Nela se dá e revela no "presente" o sentido velado da origem. O que sendo único deve permanecer como princípio imutável dum contínuo esforço de interpretação e realização da sua identidade.
É por este facto de a Tradição preservar através dos tempos e circunstâncias a referência meta-temporal originária, que ela é capaz de antiguidade e "aggiornamento". A fidelidade que isso implica torna-a activa e não "imitativa". Assim, sendo imemorial é também olvidável; sendo ideal procura incarnar no real; sendo autónoma, mas disponível, renova-se sem se alterar, evolui e enriquece-se sem se transformar. É este o paradoxo da Tradição e da tradição da Fé: "o futuro para a Igreja está num passado, isto é, num regresso a um passado mais profundo" (Cardeal Suenens, cit. L. Bouyer, "A decomposição do Catolicismo", Sampedro editora, Lisboa, s.d., p. 109).
Matéria sensível de tradição é a esfera religosa. Aí se investe o tudo e o nada do sentido. A tradição cristã assenta numa identidade a que a Fé não pode subtrair-se: o seu alicerce é Cristo como Revelação viva e pessoal de Deus. Uma tradição revelada que não só se não limita à letra das Escrituras Sagradas como encontra o critério e a garantia objectiva da sua interpretação dogmática no Magistério hierárquico. Mergulhar nas suas raízes é reconhecer Cristo como não podendo negar-se a si próprio, pois que nela permanece "o mesmo ontem, hoje e amanhã" (Hebreus 13,8). Esta Tradição da Igreja opera sobre o Ministério de Cristo como base sobre a qual se deve construir e não como ponto de partida do qual se tenha que afastar .
Num tempo em que se sublinha tanto, e bem, a dimensão futura do presente, compreender em profundidade o sentido autêntico da Tradição é garantir a possibilidade de integrar o presente no eterno, a vida na fé.
O "progressismo" e o "tradicionalismo" não o podem realizar. São inimigos da tradição. Para estes ela constitui pedra de tropeço e para aqueles pedra de escândalo. O tradicionalismo sepulta-se num "passado" que não é o eterno único. Confunde a força biologicamente criadora do arquétipo com a arqueologia histórica. Foi assim a ruptura de monsenhor Lefevre e seus seguidores. O "progressismo" católico é ainda mais radical e virulento. O que o tradicionalismo tem de acrítico, tem o inovador revolucionário de destrutivo e esvaziador. Cindindo o ponto Alfa do Omega, a ortopraxia da ortodoxia, o futuro do passado, abandona-se a todo o vento de doutrina. Querendo encontrar o futuro, perdeu o seu projecto. O erro e o equívoco dessa atitude lançou o seu repto mais violento e sério à Tradição cristã nos modelos de Igreja e de práxis apresentados por algumas teologias da libertação.
Passou há pouco tempo na televisão o filme "Nostalgia" do grande cineasta russo Tarkovski. A grande e lúcida denúncia que o realizador faz do vazio espiritual do homem moderno surge com toda a força de uma profecia. "Hoje já não há grandes mestres. Os caminhos do coração encheram-se de sombras..." ("Nostalgia").
A saudade, porém, está de Vigília no fundo das almas e desperta nelas e esperança de uma luz que se acenda, mesmo aquilo que se esqueceu e desprezou. Por isso Tarkovski parte em demanda da velha tradição religiosa do Ocidente e interroga: "O que é a fé?" Como acender uma luz na escuridão? Onde o caminho do homem?
Pela fé em "Deus que é" e que sendo desde o Princípio abriu na rota da história e na carne humana uma via eterna?
Deus é Luz de sentido primordial e purificador para a vida do homem e do mundo. Na antiga tradição da fé se acende a luz de todos aqueles que a perderam e a buscam, perseverantes, na humildade de espírito e na paciência de recomeçar de novo a procurar... A verdade e a alegria de tocarmos em Deus aquilo que de nós estava ausente e cindido e que se aplica à fé, podemos aplicá-las também à Tradição da mesma, engrandecendo-a com as palavras com que Santo Agostinho dizia de Deus:
"Afastar-se Dele é cair, dirigir-se a Ele é levantar-se; permanecer Nele é estar firme; voltar a Ele é renascer; Nele habitar é viver" (Solilóquios I, 1,3).
In “Revista de Ideias – Portugueses” Fev./Mar 1989