quinta-feira, abril 27, 2006

Um discurso de boa vontade

“É possível identificar os problemas mais graves e substituir o eterno combate ideológico, por uma ordenação de prioridades, metas e acções”...num País “fortemente marcado pelo dualismo do seu desenvolvimento”.
Apesar do “inegável progresso registado em alguns sectores de actividade”...”essas experiências de vanguarda não conseguem impregnar todo o tecido económico e social, coexistindo nichos de modernidade com expressões de indisfarçável arcaísmo social e cultural”.
“Profundas disparidades revelam-se na leitura do território. É cada vez maior o fosso entre as regiões marcadas por uma ruralidade periférica e as regiões mais urbanizadas”. Que se traduz “num mau viver resignado, sem qualidade e sem horizontes”, e acentua “a dupla exclusão do envelhecimento e da pobreza”.
Mas, “a mais marcante das disparidades que emergem deste Portugal a duas velocidades é a que resulta das desigualdades sociais”. No quadro da União Europeia, Portugal é país “que apresenta maior desigualdade de distribuição de rendimentos. E é também aquele em que as formas de pobreza são mais persistentes”.
“Não é moralmente legítimo pedir mais sacrifícios a quem viveu uma vida inteira de privação”.
Cabe-nos transmitir “ um País mais livre, mas também uma sociedade mais justa”.
Assim falou o Chefe de Estado Republicano, nas comemorações do 25 de Abril de 2006!
Que dizer?
É o retrato de um País do terceiro mundo, clássico, que construímos com orgulho e erro nos últimos trinta e dois anos. Retrato ainda mais sombrio quando se sabe que foi custeado exclusivamente pela União Europeia, na condição de nos desenvolvermos de acordo com os parâmetros civilizacionais há muito estabelecidos para a Europa Ocidental, para o primeiro mundo.
Com a agravante de nos termos desenvencilhado, sem honra, de compromissos históricos, lançando na miséria e na guerra populações inteiras, nos vários territórios que estavam sob nossa administração...há séculos!
Cavaco Silva disse a verdade sobre a situação, pena é que não possa fazer nada quanto a isso. Nem ele, nem nenhum outro Chefe de Estado republicano.
Seria necessário, antes do mais, acabar com as comemorações de guerras civis. São estúpidas, deseducativas e transmitem uma mensagem errada à população!
São estúpidas porque dão a ideia que os portugueses que existiam no dia 24 de Abril de 1974, eram diferentes ou eram outros, no dia 25!!! O mesmo se diga relativamente ao dia 27 e 28 de Maio de 1926! Ou a 4 e 5 de Outubro de 1910, etc.etc.
São deseducativas, e por isso também são estúpidas, porque dão a ideia que existem portugueses maus e portugueses bons, e que uns são sempre maus e os outros são sempre bons!!! É que pode haver quem acredite!
Por último, transmitem uma mensagem errada, convencendo os incautos, que os que perderam a guerra, golpe ou revolução, estão muito contentes nesse dia de ‘festa’!
Nestas condições de rotativismo recriminatório, sem referências, inapelávelmente divisionista, ninguém se salva, muito menos o Presidente.
Ainda que tenha razão.

terça-feira, abril 25, 2006

Canas e foguetes

“Em minarete, mate, bate, leve, verde neve, minuete de luar”...
“Rompem fogo, pandeiretas morenitas, bailam tetas e bonitas... “Voa o xaile, andorinha pelo baile...
“O colete, desta virgem endoidece, como o ‘S’ do foguete,
Em vertigem, em vertigem de luar...”

Que fique Almada em sossego, corramos ao redondel,
É dos lados de São Bento, que nos chega o aranzel!
Onde os suspeitos reúnem, consegui encurralá-los!
Mesmo sem chocas, cabrestos, não foi difícil juntá-los.
São adesivos fatais, entram todos ‘à formiga’,
Já assim eram os pais.
Pois agora que lhes faço?
Do hemiciclo redondo, para onde os hei-de enviar?
Enquanto penso e repenso, vamos então festejar!
Allô Brasil, Portugal, e Colónias de Além-Mar,
Abandonem vossas casas, venham prá rua dançar...
Os figurões estão trancados, não nos vão incomodar.
E havemos tempo para tudo!
Palrar e condecorar, é suprema vocação.
Por isso toca a bailar, enquanto dura a função.


Nota: “Rondel do Alentejo”, de Almada Negreiros, interrompido pelo 25 de Abril de 2006.

domingo, abril 23, 2006

Retribuição

Hoje fiz um poema que não era meu.
O verso no rascunho amedrontado, já existia, perdido entre letras e sinais.
Limpei, raspei, juntei tudo...tudo refeito outra vez.
E o poema revelou-se inteiro como era no princípio!
Já livre, esvoaçou primeiro, mas faltava o golpe de asa derradeiro.
O título, cravado, a tremular ao vento...foi o último alento.
Partiu feliz sentimento na direcção do além.
Criatura bem nascida, não precisa de ninguém.

Post-scriptum: Dedico este ‘postal’ ao Luís Leandro, que o inspirou, e não desistiu de ser poeta!

sábado, abril 22, 2006

"Pau de sebo"

Ser excelente!
O cimo da pirâmide
Impossível de alcançar.
Eu estendo os braços e estico-me...
Breve encontro penitente.

Fosse eu indiferente...
Mas ao menos excelente
Excelência
Alteza
Eminência
Acenando a todos, separado da minha sombra.
Meu ego feito estátua!
Ícone de gelo, só por instantes.
Desaparecer e crescer, suspenso de um outro fogo...
Ou então de novo junto dos vivos!

Nesse caminho,
Gostava de ser excelente
E até sou!
Numa única vontade, rompe-se o luto
Que nasceu desse abismo,
E em segredo foi dizendo tudo.
E em segredo celebro o instante que nos une,
Ao Omnipotente...Divino.
Sem estar obstinado,
Celebro mais um dia vivo!

Luís Leandro

quinta-feira, abril 20, 2006

Alheamento

Ando esquisito, confesso-me distante das coisas, do que se passa à minha volta, não leio jornais vai para quinze dias, não deixei crescer a barba porque a uso crescida, numa palavra, sinto-me alheio.
Lembram-me aqueles tempos mornos em que eu meditava na impossibilidade de mudar o regime. Que afinal fingiu que mudou! Só para me enganar!!!
Uma voz amiga sussurrou-me ao ouvido: será por causa do Belenenses?!
Seja como for, tenho que reagir, ir ao encontro do acontecimento, fazer prova de vida.
Segui então pelo “Último Reduto” até à notícia, já requentada, diga-se, que refere a lista dos deputados da República que fizeram gazeta à última sessão plenária, decerto por ponderosos motivos das suas atarefadas vidas particulares e privadas.
Lá estão eles, uma grande representação do bloco central, lindos meninos e meninas, que tomam conta de nós há cerca de trinta anos, com dedicação e carinho. Não sejamos injustos. Podíamos estar muito pior, olhem o que se passa pelo mundo...na Palestina, por exemplo. Eles bem merecem as ‘pontes’, umas fériazinhas nas excelsas ondas.
A Semana Santa é na praia, nas discotecas, porque a liturgia desta rapaziada tem outras datas. A 25 de Abril ninguém falta! Lá os veremos, à volta do hemiciclo, todos enfarpelados, cravo na lapela e ar solene, agradecidos pela vidinha que têm, discursos e ordens da liberdade, etc.etc....
Idiota sou eu que também lá devia estar! A botar discurso, corda ao pescoço como um Egas Moniz, a pedir desculpa pela má representação, pelas más companhias, a prometer acabar com aquilo o mais depressa possível!
Precipitei-me, mas um dia acontece...

segunda-feira, abril 17, 2006

Princípios

Páscoa poesia, Páscoa reflexão, Páscoa oração.
Recomeço com as últimas impressões, que são as que ficam: uma reflexão sobre a blogosfera, já não é a primeira que leio no Sexo dos Anjos’, que dá que pensar. Recuei de novo ao texto de abertura, com as perguntas inevitáveis a pedir resposta: diário puro e simples, claro que não, como também não pode ser publicação para agradar ao maior número de leitores; nem sequer posso atender ou desviar-me em relação a qualquer gosto específico.
Tenho a minha agenda, o meu fito, aquilo que pretendo transmitir, isso é o mais importante, que deve decidir em caso de dúvida. E se a mensagem não interessa ou interessa pouco (tem sido o caso), ou se por desdita, o problema é do mensageiro?! Aí, paciência, não posso fazer grande coisa, a não ser esperar por melhores dias.
Adiante.
E fica dito: aproveitando a Semana Santa, tenho vindo a publicar, em parcelas, a imponente “Lição” de D. Manuel Gonçalves Cerejeira sobre “A Condição do Cristão na Construção Histórica do Mundo”! Ainda faltam alguns excertos e nesse sentido procurarei editá-los ao longo das próximas semanas, talvez em dia certo, por uma questão de comodidade minha e dos interessados.
Páscoa Poesia revista na planície alentejana, no mar salgado, nas quatro padroeiras! A voz de José Campos e Sousa, os poemas de Pessoa, Sardinha e Pacheco de Amorim, algures na Internet!
Páscoa Doutrina com um excelente texto de Paulo Cunha Porto, no seu ex-futuro espaço, “Calma Penada”: versa sobre o natural acolhimento pela Igreja Católica, de ritos e práticas anteriores (pagãs), reveladoras “dessa curva ascensional do homem primitivo para a Perfeição, que é Deus”.
Páscoa Oração, rezada de forma apaixonada no “Dragoscópio”, na própria Sexta-feira Santa!
E chega ao fim este princípio de semana.

Post-scriptum: E as minhas desculpas pela inaptidão para links, a solucionar brevemente.

domingo, abril 16, 2006

Páscoa

Esperança

Da solidão do ventre,
Passei à solidão da vida,
Quase a solidão de um túmulo!

Quase uma vida!

Solidão que tentei mitigar...
Mas proximidade nunca foi fusão.

No mais populoso aglomerado,
Troquei palavras de prisão em prisão,
Sem esperar resultado.

Sem ser capaz, deixei-me ir...
Talvez fosse a eterna razão?!

De tantos asfaltos montanhosos e escarpados,
Perigosos, talvez...

Existe agora a poesia?

Ascetas e sensuais os poetas,
Homens de uma razão, vivos na solidão,
Queridos, amados pelos homens.
Seus paraísos sem ter fim, vedados ao consciente,
... Já nesse Vale D’Ourado existe poesia.

Luís Leandro

“O cristão e o mundo novo”

Em tudo que foi dito, o cristão trabalha eficazmente pelo homem. Tem por si a experiência da Igreja, que realiza pelo Espírito a obra essencial, fundamento de todas as mais: a de restituir o homem a ele mesmo, para o restituir a Deus.
Antes de mais, endireita como o Baptista os caminhos por onde o Senhor há-de passar, quero dizer: ele faz passar primeiro a verdade e o amor. Sem a verdade e o amor, a justiça ficará cega e converter-se-á em tirania ou em revolta.
Base da civilização antiga era a escravatura. A revolução que havia de a destruir, começou no dia em que os homens souberam, senhores e escravos, a dignidade da pessoa humana. O mundo novo nasceu no interior de cada um, na consciência, antes de se traduzir nas estruturas sociais.
Será sempre assim. O homem novo construirá o mundo novo. Nunca o mundo novo estará concluído, em nenhum momento da história. Estará sempre em trabalhos e dores de nascimento.
O ponto é que o cristão saiba de que espírito é e se deixe levar por ele. Como um vinho novo, fará estalar as vasilhas velhas. Transforma a sociedade, começando por transformar os homens.
Não que despreze o condicionamento humano do mundo, isto é, a adaptação deste ao homem, ou, como também se diz, a transformação, a humanização das estruturas político-sociais. É sempre ao serviço da pessoa humana que trabalha o cristão na história, quando trabalha para Deus.
E assim como S. Paulo disse aos cristãos de Éfeso que despissem o homem velho e se renovassem no espírito vestindo-se do homem novo, o cristão procura recuperar tudo para o homem, tudo o que pode ser salvo: a economia, a política, a cultura.
Trabalha pacientemente com Deus. Cada momento é uma oportunidade, que toma com espírito humilde das mãos da Providência. Ao contrário do marxismo, que sacrifica o presente ao futuro, ele edifica o presente. Não destrói para construir. Não apaga a mecha que fumega, nem quebra a cana rachada. Não abandona o bem real pelo bem imaginado. Não pratica a injustiça para realizar a justiça.

D. Manuel Gonçalves Cerejeira
Cardeal Patriarca de Lisboa

(Última Lição como Professor Catedrático da Faculdade de Letras de Coimbra – 1958) (excerto-continuação)

sábado, abril 15, 2006

“A independência do cristão”

Mas a sua situação não é cómoda. A nenhum dos idólatras apaixonados deixará de ser suspeito. Todos os que estão, inconscientemente embora, contra a pessoa humana o denunciarão.
O escritor francês Bernanos, num livro célebre, deixou cair esta frase: “o oportunismo sagrado da Igreja”. Muitos interpretarão oportunismo no sentido de maquiavelismo. Deveriam antes pensar em transcendência, que não consente a Igreja possa ser prisioneira senão da verdade e do amor.
A todos os sectarismos, o cristão parecerá herético; a todos os messianismos, parecerá conformista; a todas as insurreições, parecerá traidor. O cristão estará sempre em contradição com tudo que é inquinado de idolatria: isto é, que pretenda ser como Deus. O seu oportunismo chama-se antes realismo cristão, sentido do ser, ou (o que é o mesmo) da verdade, da razão, da natureza. O cristão, como tão vivamente sentia o Apóstolo, foi libertado por Cristo das cadeias que faziam gemer pelo Redentor a Criação.
A sua independência, num mundo de tantos altares, menos o do Deus verdadeiro, como outrora na luminosa Atenas, revela-se apenas isto: fidelidade, autenticidade.

D. Manuel Gonçalves Cerejeira
Cardeal Patriarca de Lisboa

(Última Lição como Professor Catedrático da Faculdade de Letras de Coimbra – 1958) (excerto-continuação)

sexta-feira, abril 14, 2006

“Os mitos homicidas”

Porque ignora ou esquece a lei de Deus, a lei natural e a lei cristã (a lei cristã consagra e eleva a primeira), é que o mundo actual recai no pecado de idolatria, adorando ídolos. E estes ídolos são como os cruéis ídolos da antiguidade, que devoram os adoradores. No culto deles, o homem espera a libertação, e torna-se mais escravo; celebra “os amanhãs que cantam” e chora sempre no desespero do presente; anuncia as searas que amadurecem, e nunca chega a colher-lhes o fruto.
À roda do cristão, os homens aí seduzidos por mitos salvadores: sistemas arvorados em dogmas, ideologias tornadas religião, místicas profanas erguidas a evangelho do mundo novo. Esquecida a verdadeira escala humana, desenvolvem-se os monstros; projectos de uma humanidade sem autêntica medida humana, esboços do homem que pretende ser por-si-mesmo, sem saber o que é e sem saber como pode ser; verdades humanas, relativas, que enlouqueceram, revestindo-se de atributos divinos, convertidas em princípios absolutos a que tudo o mais há-de ser sacrificado.
É aí o mito da liberdade, uma liberdade abstracta e absoluta, que destrói as liberdades; o da classe, que ressuscita, laicizado, o conceito messiânico de raça ou classe eleita, e trás consigo a guerra; o do estado divinizado, autoritário ou democrático, não importa, os quais são ambos totalitários, se não reconhecem as limitações e obrigações da lei natural e divina; o do socialismo marxista de um mundo e homem novos, que é construído sobre a imolação dos obreiros que não chegam – não chegarão nunca – a vê-lo; o da eficácia, que subordina a moral ao êxito, o bem concreto ao bem ideal, o presente ao futuro; o da novidade, que renuncia ao poder de julgar, descolora de valores a obra humana, faz do tempo o critério (que é a maneira de não ter critério), destrói a todo o momento o que cultivara; o do regime político, o qual confunde técnicas da organização política com valores morais ou mesmo com o Evangelho, identificando-se com a realização histórica do reino de Deus.
É missão do cristão no mundo de hoje desmitificar as realidades, as esperanças humanas. Ou, como disse certo escritor insuspeito, “desengordurar definitivamente a política da mistura impura do absoluto”. Mais precisamente, trazer os problemas do homem às suas dimensões naturais, colocá-los na verdadeira escala humana, situá-los, concretamente, na sua ordem, na sua medida, na sua natureza, na sua realidade, como já foi notado. O cristão fiel ao seu espírito nem poderá deixar-se embarcar em místicas irracionais, ou irrealistas, que violam a ordem da natureza; nem poderá deixar-se tentar por nenhuma forma de terrenismo. Tudo julga e mede por aquele único metro que mede o homem e a natureza, o Metro que é a medida da criação inteira, o Verbo de Deus feito homem.
E assim o cristão, iluminado pela Fé e guiado pala caridade, trabalha eficazmente no interior das humanas realidades, cooperando com Deus na construção do mundo. Liberta-as, restaura-as, ele salva verdadeiramente o mundo.

D. Manuel Gonçalves Cerejeira
Cardeal Patriarca de Lisboa

(Última Lição como Professor Catedrático da Faculdade de Letras de Coimbra – 1958) (excerto-continuação)

quinta-feira, abril 13, 2006

“O homem e a ordem natural e divina”

Para todo o cristão o Cristianismo significa a plenitude da história. É por ele e nele que o homem atinge a consciência do que é, e encontra os meios de se realizar. Citarei palavras do já nomeado sociólogo inglês Dawson: “ o Cristianismo ensinava que entrara, com Jesus, no género humano e no mundo natural, um novo princípio de vida divina pelo qual a humanidade se via elevada a grau superior. Cristo é a cabeça desta humanidade restaurada, o primogénito da nova criação; e a vida da Igreja consiste no aumento progressivo da Incarnação pela gradual incorporação do género humano nesta ordem superior”.
Torna-se evidente que não se poderá salvar o homem, se se despreza a sua natureza e destino, ou, por outras palavras, a ordem natural e divina. No fundo de todo o problema de civilização e cultura está o problema do conceito do homem. Toda a obra que não respeita aquela ordem, sacrifica a pessoa humana. E como ela é o termo da criação, que de certo modo deve assumir e elevar consigo, degrada esta.
O filósofo Sartre insurge-se contra tal noção de ordem, de lei, de natureza. Elas importariam a ruína da liberdade. No drama filosófico Mouches manifesta claramente o seu pensamento: a recusa, a revolta oposta por Orestes à ordem estabelecida por Júpiter seria a condição da liberdade. Simplesmente, nem Júpiter é o Deus do Evangelho (e não há outro), nem a ordem cristã é essa ordem imutável governada pela lei fatal da necessidade, da filosofia grega.
Ordem natural, lei natural, ordem divina do mundo, não quer dizer alguma coisa de externo, de arbitrário, mas sim fidelidade à natureza íntima, à finalidade intrínseca da criação. É expressão do ser, autenticidade ontológica, esplendor de verdade.
E o Deus do Evangelho é Deus-Amor, como o definiu o Apóstolo teólogo. A lei cristã, a lei da graça, significa comunhão de amor, entre Deus e o homem. É deificação da criatura humana. Restaura, purifica, exalta, sobrenaturaliza. Insere na história a Luz e o Amor de Deus, a própria natureza divina. Numa palavra, é associação e colaboração da Trindade Santíssima e do homem.
E onde a relação é de amor, já não há lugar para servidão, só cabe liberdade.
Desprezar a ordem divina do mundo, desconhecer a natureza e destino do homem, será jazer infalivelmente na desordem, na tirania, no anti-natural e anti-cristão, no infra ou anti-humano.
Deus criador e redentor está no princípio de todo o programa e empresa de salvação do homem. Tudo readquire o seu lugar e valor no universo; refaz-se a harmonia da criação, que o pecado desfez; tudo se recupera e valoriza e hierarquiza, do que foi criado; tudo é salvo.

D. Manuel Gonçalves Cerejeira
Cardeal patriarca de Lisboa

(Última Lição como Professor Catedrático da Faculdade de Letras de Coimbra – 1958) (excerto-continuação)

quarta-feira, abril 12, 2006

“Pessoa humana e civilização cristã”

Avançarei desde já que é missão do cristão na história salvar a pessoa humana. Comecei nesta Universidade o meu ensino estudando o nascimento da Europa, da civilização ocidental, nessa fecunda Idade Média, madre do mundo novo, que tentei reabilitar. Europa, civilização ocidental, se estas palavras têm ainda sentido comum, quero dizer, conteúdo positivo (e não simplesmente situação geográfica), deve-se ao resíduo de valores cristãos. Nasceram, “não sobre uma unidade política, mas sobre uma unidade eclesiástica”, sob as asas maternas da Igreja.
Desta origem provém o humanismo, que é nota essencial da civilização cristã. Com o nome de respeito do homem pelo facto de ser homem, como dizia o velho Guizot, ou o de respeito da pessoa humana, como se diz hoje, ele sobrevive (até quando?) na consciência moderna. Foi Dawson, o sociólogo inglês, hoje professor na Universidade americana de Harvard, quem notou que o mesmo humanismo ateu era fruto restante da árvore cristã. E, na luta de gigantes que se trava aí ante nossos olhos assustados, é ainda ele, “por mais enfraquecido que esteja, que, apesar de tudo, constitui, em face do comunismo, a única unidade de fé que subsiste no Ocidente”.


A situação do cristão na história

Numa visão cristã da história, pode afirmar-se que tudo na criação é para o homem e o homem é para Deus. O Apóstolo S. Paulo, com a sua força habitual, proclamou-o aos neo-cristãos de Corinto: “tudo é vosso e vós sois de Cristo”.
E nestas imensas palavras se condensa o duplo destino, temporal e eterno, do cristão. Como Jesus Cristo mesmo disse, ele está no mundo mas não é do mundo.
Não sendo do mundo, a sua transcendência aos limites do espaço e do tempo impede-o de se deixar reduzir ao mundo. É superior ao mundo, tem um destino próprio, ele é de Deus, tudo deve ser subordinado à sua própria salvação.
E desde já é evidente que não pode jamais deixar-se absorver, sem se negar, “no movimento da existência temporal, no oceano todo-poderoso da história”, ou seja, na classe, na raça, na nação, na humanidade.
Mas estando no mundo, o cristão realiza nele a sua salvação. Não é evadindo-se do mundo, num sobrenaturalismo desincarnado, que logrará ser de Deus. Cristianismo significa incarnação de Deus e deificação do homem. Não é destruindo em si o homem que o cristão se tornará cristão. Pelo contrário, o cristão tornará em si o homem mais homem, na medida em que mais ele for de Deus; explicando, na medida em que melhor se conformar com o Homem-Deus, realizar o Pensamento e o Amor que o criou.
O cristão, pois, deverá empenhar-se, com toda a sinceridade e resolução, nas tarefas temporais tendentes a adaptar o mundo ao homem, de o humanizar, para o restituir a Deus. Fazendo-o, coopera na obra da Incarnação e da Redenção, que assume, restaura e eleva o homem e a criação inteira.
(...)

D. Manuel Gonçalves Cerejeira
Cardeal Patriarca de Lisboa

(Última Lição como Professor Catedrático da Faculdade de Coimbra – 1958) (excerto – continuação)

terça-feira, abril 11, 2006

“A Condição do Cristão na Construção Histórica do Mundo”

“Volto à velha Universidade de Coimbra, ao fim de trinta anos de ausência – para morrer nela como seu professor.
Nem me faltam, conforme é costume e a amizade inspira, os rituais elogios fúnebres, digo, académicos. A Universidade consagra um filho; perdoe-se-lhe, à nossa boa Alma Mater, a cegueira do louvor. Nem se lhe leve em conta que, louvando-o a ele, em grande parte se louva a si, que o formou.
A minha volta aqui é romagem de saudade, certamente. Mas quer ser sobretudo de homenagem à prestigiosa Universidade, que deu brilho ao meu obscuro nome, inscrevendo-me no áureo catálogo dos seus “lentes”.
Recordo agora que lhe chamei, ao começar, velha. Noto, porém, ao revê-la, que está mais nova. Quem está velho sou eu...


O problema do homem no mundo actual

Não iniciarei esta última lição como o salmaticense Fr. Luís de Leon, ao retomar a cátedra, após os tantos anos de reclusão inquisitorial: “como íamos dizendo”. Eu direi antes: - concluindo.
Dissertarei sobre a condição do cristão na construção histórica do mundo. Todos reconhecem que o mundo cresceu, quebrando os antigos limites; a ciência e a técnica estão aí a tentar alargá-lo aos espaços interplanetários; louco de orgulho, já desafiou o Criador, proclamando que também o homem pode povoar o espaço; até promete fabricar um mundo novo e um homem novo.
O problema, todavia, o grande problema, o problema trágico, é se há lugar para o homem no mundo novo, se o homem novo ainda é homem.
Em 1946, consagrado escritor francês abria na Sorbona uma solene conferência da Unesco nos seguintes termos: “No fim do século último, a voz de Nietzsche retomou a frase antiga ouvida no arquipélago: Deus morreu. Sabia-se muito bem o que queria isso dizer; isso queria dizer que se esperava a realeza do homem. O problema que se põe para nós hoje é saber se, nesta velha Europa, sim ou não, o homem morreu”.
Não tem faltado quem creia cegamente no movimento da história. Cada momento seria um avanço. A evolução constante, necessária, do mundo desenvolver-se-ia em progresso indefinido. – Mas não equivalerá isto, sem insistir agora no que historicamente há de errado, a dizer que a história não tem sentido? Neste conceito da história, o que sucede é o que devia suceder. Bem e mal identificam-se na raiz; o êxito consagra tudo. O único critério de valor é o facto da existência histórica. Porque falar então de progresso onde só há movimento? Porque dizer melhor, onde só vale sucessivo? Para julgar a história torna-se necessária uma escala de valores superior a ela.
O historicismo absoluto – e ele é uma consequência lógica do intelectualismo ateu – nega a realidade do mundo moral. Aquilo que distingue o homem na criação, e o forma como tal, isto é, a verdade, o bem, a justiça, o amor, tudo isso seriam grandes palavras sem conteúdo objectivo. O historicismo destrói o homem.
Nem nos detenhamos no pessimismo existencialista que pretende é este um mundo “sem caminho”, e o homem “uma paixão inútil”. Como alguém disse, “a origem de todo o desespero é a crença de que vivemos num mundo absurdo que não tem nem direcção nem fim. Não está o horror no drama, mesmo se comporta peripécias sangrentas e riscos de condenação; o horror está antes na ausência de drama, no caos material de que a criatura pensante não é mais que um elemento inútil. O escândalo não está no sofrimento, mas no sofrimento sem razão, sem causa, no sofrimento inútil e perdido”.
(...)

D. Manuel Gonçalves Cerejeira
Cardeal Patriarca de Lisboa

(Última Lição como Professor Catedrático da Faculdade de Letras de Coimbra – 1958) (excerto)

sábado, abril 08, 2006

Um Padrão com paredes de vidro

Estava plantado em cima da Rosa-dos-ventos, sem tirar os olhos do monumento, não andava nem para a frente, nem para trás!
- Oh homem entre, insistiu o guia! Lá dentro temos um elevador e um filme para você ver! E especiarias!
Nunca entrei no ‘Padrão dos Descobrimentos’, por isto ou por aquilo, falta de interesse. Estou farto de comemorações, desconfio dos comemorativos, aliás, uma raça de impotentes bem conhecida. Mas a malta já tinha entrado toda, eu entrei também.
Antes, tínhamos dado uma volta ao Padrão, acompanhando o esforço dos navegantes e do cicerone para os identificar. São trinta e duas personagens que, de um lado e doutro, parecem empurrar qualquer coisa para o rio!
O Infante D. Henrique, ‘The Navigator’, bem proeminente, de caravela na mão, não se confunde, é o homenageado. Grão-mestre da Ordem de Cristo. O personagem trinta e três!
O motivo: quinhentos anos passados sobre o seu passamento – (1460-1960).
E a oportunidade para reconstruir em pedra, uma estrutura precária utilizada para o mesmo efeito em 1940 para abrilhantar a “Exposição do Mundo Português”.
Então nesse ano a Europa não andava toda em guerra? E nós fazíamos exposições?!
Duas interrogações disparadas sobre a minha pessoa, e tive que me defender:
Primeiro, é para que vejam que ‘Portugal não é só um país europeu...’! Segundo, é para que vejam como nos transformámos num País de eventos!
Terceiro, talvez para lembrar à Europa e ao Mundo, entretanto em guerra, que afinal existíamos! Para que no fim não se esquecessem de nós...nas partilhas, em lugar de nos partilhar!
E seguimos viagem rumo ao pequeno filme de produção francesa, inspirado em biombos chineses, e que mostra os portugueses de nariz comprido e hábitos estranhos...para os japoneses. Uma autêntica descoberta. Tive que fazer um esforço para assimilar o alcance e manter a auto-estima em alta.
Já entre as especiarias, destaco:
- Os autores da Obra: arquitecto Cottineli Telmo e o escultor Leopoldo de Almeida;
- Os retratos da inauguração, onde se lembram: Américo Tomás, Salazar e o seu Ministro das Obras Públicas, também o Presidente do Brasil, Kubitschek de Oliveira, do que me ficou na retina;
- E umas pequenas tabuletas, penduradas na parede, com o registo da guerra civil permanente que vai consumindo a nossa existência!
Sobre o ano de 1960, diz-se o seguinte: “Ano em que Àlvaro Cunhal e outros presos políticos se evadiram da prisão de Peniche...Ano da inauguração do ”Padrão dos Descobrimentos” para comemorar os quinhentos anos...”!
Foi a vez de subir no elevador, e lá do cimo, de costas para o rio, tentar descobrir o Palácio da Ajuda, a Igreja da Memória, o Estádio do Restelo! E outros monumentos.
Mais em baixo, a Avenida da Índia, mais longe, a infância na Junqueira...

quinta-feira, abril 06, 2006

“Sobre o actual momento de política e definição estratégica”

(População toxicodependente)

“Deu-se nos últimos anos uma alteração da população toxicodependente: de um problema maioritáriamente juvenil, passou-se para uma questão sobretudo social, que afecta adultos auto-marginalizados;

Seria da maior pertinência política e social considerar os adolescentes envolvidos em percursos de toxicodependência, não criminosos. O haxixe e o álcool, bem como a cocaína consumida esporadicamente, podem ser substâncias consumidas sem ruptura social por jovens que assim mesmo se manifestam descrentes dos compromissos e expectativas que a sociedade lhes propõe. Não esquecer, por conseguinte, que quem semeia ventos colhe tempestades;

A semelhança na química das substâncias aditivas não dispensa uma diferenciação ética entre as mesmas;


(Descriminalização)

A descriminalização foi uma falácia. Não alterou substancialmente os percursos na justiça. Estes dependem sobretudo da dificuldade em adquirir droga. Só haverá menos toxicodependentes presos se houver liberalização do comércio das drogas. É isso que se pretende?
Pensamos que a descriminalização deu à sociedade um sinal contra educativo. O bem jurídico que consiste na existência de cidadãos responsáveis foi desvalorizado;
Pensamos que é educativo manter o sinal pedagógico da criminalização. O mesmo não é dizer que os toxicodependentes devam ser presos. Pertence ao legítimo poder político criar alternativas consistentes do ponto de vista educativo e solidário;


(Salas de Chuto)

Parece ser um problema nascido mais da imaginação das juventudes partidárias e do BE do que da atenção à realidade;
O partido do Governo parece estar mais comprometido com compromissos tácticos do que convicto da bondade de tal medida;
Se as Salas de Chuto pretendem diminuir os riscos de contágio com o HIV+ erram o alvo. Os eventuais dependentes contagiáveis pretenderam outra coisa que não ser elencados e identificados. Entre os toxicodependentes que eventualmente se encontrem disponíveis para frequentar as Salas de Chuto contam-se sobretudo os já doentes de HIV+;
Por outro lado pensar que assim se consegue trazer para a rede de saúde os mais degradados é esquecer que faz parte da sua própria atitude aproveitar-se da rede de saúde pública para não sair. Dos bairros mais degradados saem os que são perseguidos pela delinquência associada à sua marginalidade e não os que o Estado ajuda a serem marginais;
Pode-se suspeitar que existam interesses corporativos associados às estruturas técnicas do Estado que pretendam ver avançar esta hipotética nova frente de trabalho;


(Algumas sugestões)

Estude-se qual seria efectivamente a eventual população que frequentaria as Salas de Chuto através de um organismo independente das estruturas estatais (por exemplo, através de Gabinetes de Estudo das Universidades);

O que consideramos verdadeiramente preocupante é:

- A situação das prisões;
- A marginalidade adulta entre adolescentes;
- O consumo crescente de haxixe (15% dos jovens estudantes europeus fumam haxixe mais de quarenta vezes por ano);
- A desistência de um discurso e prática educativa de valores e virtudes para promover a integração e normalização sucessiva de sintomas de mal-estar social (Não há drogados felizes – C. Olivenstein);
- Melhorar a segurança de vizinhança de acordo com a Teoria dos Vidros Partidos: o abandono da vigilância acelera o ritmo da degradação...”

(excerto de uma comunicação do “Vale de Acór”, comunidade terapêutica de recuperação de toxicodependentes, que com a devida vénia transcrevo)

quarta-feira, abril 05, 2006

“Sobre o nosso entendimento dos deveres do Estado”

“ O Estado existe, não para proteger os vícios pessoais, mas para promover o bem de todos, porquanto o seu dever mais elevado está ligado justamente ao preceito da caridade: ajudar os débeis, defender os oprimidos, fazer o bem àqueles que vivem em dificuldade (...). A ordem natural baseia-se sobre o extermínio recíproco ou, no melhor dos casos, sobre uma mútua limitação dos homens. A ordem moral é baseada na recíproca solidariedade e a expressão primeira e mais simples de tal ordem é a ajuda gratuita, a beneficência desinteressada.”

Vladimir Soloviev


“...O mundo inteiro indiferente com a desgraça daqueles dezanove anos. O primeiro dever da civilização é evitar que fiquem os desgraçados pelo caminho!
Os desgraçados são a vergonha da humanidade, são a desonra da civilização!
Mas a vida passava-se lá muito acima disto tudo, ocupada com a vida de todos, indiferente com a vida de cada um.”

Almada Negreiros

(excerto de uma comunicação do "Vale de Acór", comunidade terapêutica de recuperação de toxicodependentes, que com a devida vénia transcrevo)

terça-feira, abril 04, 2006

“Sobre a nossa Missão”

“ O amor torna-se o critério para a decisão definitiva sobre o valor ou inutilidade duma vida humana. No mais pequenino encontramos o próprio Jesus e, em Jesus, encontramos Deus”.

“Sobretudo para o pensamento marxista ‘os pobres não teriam necessidade de obras de caridade, mas de justiça”.

“A justiça é o objectivo e, consequentemente, também a medida intrínseca de toda a política. A política é mais do que uma simples técnica para a definição dos ordenamentos públicos: a sua origem e o seu objectivo estão precisamente na justiça e esta é de natureza ética. (...) O que é a justiça? Isto é um problema que diz respeito à razão prática; mas, para poder operar rectamente, a razão deve ser continuamente purificada porque a sua cegueira ética, derivada do interesse e do poder que a deslumbram, é um perigo nunca totalmente eliminado”.

(...) O amor – caritas – será sempre necessário mesmo na sociedade mais justa.
Não há qualquer ordenamento estatal justo que possa tornar supérfluo o serviço do amor. Quem quer desfazer-se do amor, prepara-se para se desfazer do homem enquanto homem. Sempre haverá sofrimento que precisa de consolação e ajuda.
Haverá sempre solidão. Existirão sempre também situações de necessidade material, para as quais é indispensável uma ajuda numa linha de um amor concreto ao próximo. Um Estado, que queira prover a tudo e tudo açambarque, torna-se no fim de contas uma instância burocrática, que não pode assegurar o essencial de que todo o homem sofredor – todo o homem – tem necessidade: a amorosa dedicação pessoal.”

Papa Bento XVI

(excerto de uma comunicação do “Vale de Acór”, comunidade terapêutica de recuperação de toxicodependentes, que com a devida vénia transcrevo).