quarta-feira, abril 12, 2006

“Pessoa humana e civilização cristã”

Avançarei desde já que é missão do cristão na história salvar a pessoa humana. Comecei nesta Universidade o meu ensino estudando o nascimento da Europa, da civilização ocidental, nessa fecunda Idade Média, madre do mundo novo, que tentei reabilitar. Europa, civilização ocidental, se estas palavras têm ainda sentido comum, quero dizer, conteúdo positivo (e não simplesmente situação geográfica), deve-se ao resíduo de valores cristãos. Nasceram, “não sobre uma unidade política, mas sobre uma unidade eclesiástica”, sob as asas maternas da Igreja.
Desta origem provém o humanismo, que é nota essencial da civilização cristã. Com o nome de respeito do homem pelo facto de ser homem, como dizia o velho Guizot, ou o de respeito da pessoa humana, como se diz hoje, ele sobrevive (até quando?) na consciência moderna. Foi Dawson, o sociólogo inglês, hoje professor na Universidade americana de Harvard, quem notou que o mesmo humanismo ateu era fruto restante da árvore cristã. E, na luta de gigantes que se trava aí ante nossos olhos assustados, é ainda ele, “por mais enfraquecido que esteja, que, apesar de tudo, constitui, em face do comunismo, a única unidade de fé que subsiste no Ocidente”.


A situação do cristão na história

Numa visão cristã da história, pode afirmar-se que tudo na criação é para o homem e o homem é para Deus. O Apóstolo S. Paulo, com a sua força habitual, proclamou-o aos neo-cristãos de Corinto: “tudo é vosso e vós sois de Cristo”.
E nestas imensas palavras se condensa o duplo destino, temporal e eterno, do cristão. Como Jesus Cristo mesmo disse, ele está no mundo mas não é do mundo.
Não sendo do mundo, a sua transcendência aos limites do espaço e do tempo impede-o de se deixar reduzir ao mundo. É superior ao mundo, tem um destino próprio, ele é de Deus, tudo deve ser subordinado à sua própria salvação.
E desde já é evidente que não pode jamais deixar-se absorver, sem se negar, “no movimento da existência temporal, no oceano todo-poderoso da história”, ou seja, na classe, na raça, na nação, na humanidade.
Mas estando no mundo, o cristão realiza nele a sua salvação. Não é evadindo-se do mundo, num sobrenaturalismo desincarnado, que logrará ser de Deus. Cristianismo significa incarnação de Deus e deificação do homem. Não é destruindo em si o homem que o cristão se tornará cristão. Pelo contrário, o cristão tornará em si o homem mais homem, na medida em que mais ele for de Deus; explicando, na medida em que melhor se conformar com o Homem-Deus, realizar o Pensamento e o Amor que o criou.
O cristão, pois, deverá empenhar-se, com toda a sinceridade e resolução, nas tarefas temporais tendentes a adaptar o mundo ao homem, de o humanizar, para o restituir a Deus. Fazendo-o, coopera na obra da Incarnação e da Redenção, que assume, restaura e eleva o homem e a criação inteira.
(...)

D. Manuel Gonçalves Cerejeira
Cardeal Patriarca de Lisboa

(Última Lição como Professor Catedrático da Faculdade de Coimbra – 1958) (excerto – continuação)

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