terça-feira, abril 11, 2006

“A Condição do Cristão na Construção Histórica do Mundo”

“Volto à velha Universidade de Coimbra, ao fim de trinta anos de ausência – para morrer nela como seu professor.
Nem me faltam, conforme é costume e a amizade inspira, os rituais elogios fúnebres, digo, académicos. A Universidade consagra um filho; perdoe-se-lhe, à nossa boa Alma Mater, a cegueira do louvor. Nem se lhe leve em conta que, louvando-o a ele, em grande parte se louva a si, que o formou.
A minha volta aqui é romagem de saudade, certamente. Mas quer ser sobretudo de homenagem à prestigiosa Universidade, que deu brilho ao meu obscuro nome, inscrevendo-me no áureo catálogo dos seus “lentes”.
Recordo agora que lhe chamei, ao começar, velha. Noto, porém, ao revê-la, que está mais nova. Quem está velho sou eu...


O problema do homem no mundo actual

Não iniciarei esta última lição como o salmaticense Fr. Luís de Leon, ao retomar a cátedra, após os tantos anos de reclusão inquisitorial: “como íamos dizendo”. Eu direi antes: - concluindo.
Dissertarei sobre a condição do cristão na construção histórica do mundo. Todos reconhecem que o mundo cresceu, quebrando os antigos limites; a ciência e a técnica estão aí a tentar alargá-lo aos espaços interplanetários; louco de orgulho, já desafiou o Criador, proclamando que também o homem pode povoar o espaço; até promete fabricar um mundo novo e um homem novo.
O problema, todavia, o grande problema, o problema trágico, é se há lugar para o homem no mundo novo, se o homem novo ainda é homem.
Em 1946, consagrado escritor francês abria na Sorbona uma solene conferência da Unesco nos seguintes termos: “No fim do século último, a voz de Nietzsche retomou a frase antiga ouvida no arquipélago: Deus morreu. Sabia-se muito bem o que queria isso dizer; isso queria dizer que se esperava a realeza do homem. O problema que se põe para nós hoje é saber se, nesta velha Europa, sim ou não, o homem morreu”.
Não tem faltado quem creia cegamente no movimento da história. Cada momento seria um avanço. A evolução constante, necessária, do mundo desenvolver-se-ia em progresso indefinido. – Mas não equivalerá isto, sem insistir agora no que historicamente há de errado, a dizer que a história não tem sentido? Neste conceito da história, o que sucede é o que devia suceder. Bem e mal identificam-se na raiz; o êxito consagra tudo. O único critério de valor é o facto da existência histórica. Porque falar então de progresso onde só há movimento? Porque dizer melhor, onde só vale sucessivo? Para julgar a história torna-se necessária uma escala de valores superior a ela.
O historicismo absoluto – e ele é uma consequência lógica do intelectualismo ateu – nega a realidade do mundo moral. Aquilo que distingue o homem na criação, e o forma como tal, isto é, a verdade, o bem, a justiça, o amor, tudo isso seriam grandes palavras sem conteúdo objectivo. O historicismo destrói o homem.
Nem nos detenhamos no pessimismo existencialista que pretende é este um mundo “sem caminho”, e o homem “uma paixão inútil”. Como alguém disse, “a origem de todo o desespero é a crença de que vivemos num mundo absurdo que não tem nem direcção nem fim. Não está o horror no drama, mesmo se comporta peripécias sangrentas e riscos de condenação; o horror está antes na ausência de drama, no caos material de que a criatura pensante não é mais que um elemento inútil. O escândalo não está no sofrimento, mas no sofrimento sem razão, sem causa, no sofrimento inútil e perdido”.
(...)

D. Manuel Gonçalves Cerejeira
Cardeal Patriarca de Lisboa

(Última Lição como Professor Catedrático da Faculdade de Letras de Coimbra – 1958) (excerto)

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