“Há uma altura em que, depois de se saber tudo, tem de se desaprender. Sucede assim com o escrever. Com o escrever do escritor, entenda-se. Eu, provavelmente poeta, estou a aprender a... desaprender. E para quê e como se desaprende? Para deixar de ronronar, para que o leitor, quando o nosso produto lhe chega às mãos, não exclame, satisfeito ou enfastiado: ‘ – Cá está ele! ‘
Na verdura dos seus anos, a preocupação do escritor parece ser a da originalidade. Ser-se original é mostrar-se que se é diferente. E as pessoas gostam das primeiras piruetas que um sujeito dá. E o sujeito gosta de que as pessoas vejam nele um talento.
Atenção, vêm aí as receitas, as ideias feitas, os passes de mão, os clichés, os lugares selectos ou, mais comezinhamente, os lugares comuns. O escritor está instalado. Revê-se na sua obra. Começa a abalançar-se a voos mais altos, a mergulhos mais fundos. É a intelectualidade que o chama ao seu seio, o público que o põe, vertical, nas suas prateleiras. Arrumado.
Quase sem dar por isso, o escritor acomodou-se e tornou-se cómodo, quando propendia, nos seus verdes anos, a incomodar-se e a tornar-se incómodo. Organiza dossiers com os recortes das críticas que lhe fizeram ao longo da sua carreira (nome, já de si, chamuscante), vai a colóquios, celebrações, congressos. Ganha prémios. É traduzido e publicado no estrangeiro. Por desfastio (e porque não, algum dinheiro) aceita colaborar em conspícuas revistas ou em jornais efémeros como o dia-a-dia em que vão sendo publicados. Está de tal modo visível que já ninguém dá por ele. É o escritor.
Se as coisas continuarem indefinidamente assim, o escritor pode ser alcandorado a gloríola nacional, com todos os direitos inerentes a uma situação dessas: academia, nome de rua, estatueta ou estátua, tudo isso em devido tempo, quer dizer, já velho ou já morto o escritor.
Pedra campal sobre o assunto.
Este é o exemplo do escritor autófago. Comeu-se a si próprio, melhor dizendo, comeu a sua própria imagem. Não por aquela devoração que o acto de criar traz consigo, mas por excesso de confiança na pessoa literata que projectou, como um halo, para todos os lados da sua figura.
E de que outro modo poderia ser?
Para não falar de modéstia – e afastando, desde já, qualquer vislumbre de proselitismo – eu arriscaria dizer que estará condenado a si mesmo todo o escritor que não prestar mais atenção aos outros e às coisas deste mundo do que à sua – sem dúvida importante, sem dúvida decisiva – preciosa personalidade. O segredo da abelha é esse. Quem não tiver uma curiosidade encarniçada por tudo o que o rodeia, quem alguma vez supuser que dá mais do que recebe, está perdido para o tal desaprender que repõe em causa ideias e formas. É que, depois de se saber tudo, estará sempre tudo por se saber.
O criador deve ter a consciência de que, por melhor que crie, não consegue mais do que aproximações a uma perfeição que lhe é inatingível. Ele é um derrotado à partida. Sabê-lo e, apesar de tudo, prosseguir, é o seu único e legítimo motivo de orgulho.
O resto é bilros.”
Alexandre O’Neill
Na verdura dos seus anos, a preocupação do escritor parece ser a da originalidade. Ser-se original é mostrar-se que se é diferente. E as pessoas gostam das primeiras piruetas que um sujeito dá. E o sujeito gosta de que as pessoas vejam nele um talento.
Atenção, vêm aí as receitas, as ideias feitas, os passes de mão, os clichés, os lugares selectos ou, mais comezinhamente, os lugares comuns. O escritor está instalado. Revê-se na sua obra. Começa a abalançar-se a voos mais altos, a mergulhos mais fundos. É a intelectualidade que o chama ao seu seio, o público que o põe, vertical, nas suas prateleiras. Arrumado.
Quase sem dar por isso, o escritor acomodou-se e tornou-se cómodo, quando propendia, nos seus verdes anos, a incomodar-se e a tornar-se incómodo. Organiza dossiers com os recortes das críticas que lhe fizeram ao longo da sua carreira (nome, já de si, chamuscante), vai a colóquios, celebrações, congressos. Ganha prémios. É traduzido e publicado no estrangeiro. Por desfastio (e porque não, algum dinheiro) aceita colaborar em conspícuas revistas ou em jornais efémeros como o dia-a-dia em que vão sendo publicados. Está de tal modo visível que já ninguém dá por ele. É o escritor.
Se as coisas continuarem indefinidamente assim, o escritor pode ser alcandorado a gloríola nacional, com todos os direitos inerentes a uma situação dessas: academia, nome de rua, estatueta ou estátua, tudo isso em devido tempo, quer dizer, já velho ou já morto o escritor.
Pedra campal sobre o assunto.
Este é o exemplo do escritor autófago. Comeu-se a si próprio, melhor dizendo, comeu a sua própria imagem. Não por aquela devoração que o acto de criar traz consigo, mas por excesso de confiança na pessoa literata que projectou, como um halo, para todos os lados da sua figura.
E de que outro modo poderia ser?
Para não falar de modéstia – e afastando, desde já, qualquer vislumbre de proselitismo – eu arriscaria dizer que estará condenado a si mesmo todo o escritor que não prestar mais atenção aos outros e às coisas deste mundo do que à sua – sem dúvida importante, sem dúvida decisiva – preciosa personalidade. O segredo da abelha é esse. Quem não tiver uma curiosidade encarniçada por tudo o que o rodeia, quem alguma vez supuser que dá mais do que recebe, está perdido para o tal desaprender que repõe em causa ideias e formas. É que, depois de se saber tudo, estará sempre tudo por se saber.
O criador deve ter a consciência de que, por melhor que crie, não consegue mais do que aproximações a uma perfeição que lhe é inatingível. Ele é um derrotado à partida. Sabê-lo e, apesar de tudo, prosseguir, é o seu único e legítimo motivo de orgulho.
O resto é bilros.”
Alexandre O’Neill
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