No horizonte dos séculos, ou dos milénios, da História de Portugal, estes quinze dias de campanha febril não são coisa nenhuma. Mas em tão pequeno tempo, burocraticamente determinado e medido, quantas paixões, quantos anseios, quantos ódios ficam bem abertos e tão mal fechados…
Na perspectiva do pensamento político, o melhor comentário desta corrida alucinante pertence ao duque de Bragança, na conferencia de imprensa dada na véspera do 1º de Dezembro, quando já se sentia por todo o País o cheiro a chamusco, e lhe perguntaram pela proximidade a que se situava de cada um dos quatro candidatos. Dom Duarte de Bragança respondeu soberanamente, que a todos permanecia equidistante. Em nenhum votaria, por ser o representante dos reis de Portugal. Mas nenhum considerava indigno de receber o voto de cada português monárquico.
Para muitos milhares de portugueses, vive-se, nestes dias, uma hora grande. Aqueles para quem a república não é apenas um artifício jurídico ou uma ideologia, nascida (e quase logo morta) nos últimos anos do século XVIII – esses que sinceramente participam no drama comunitário, e sofrem e gozam com as vicissitudes da pátria –, esta eleição presidencial aparece como momento alto de convivência, sinal e anúncio de uma existência mais digna, e até modelo de paixão colectiva.
Para mim, monárquico que nunca se conheceu republicano, nada custa reconhecer uma certa grandeza neste fervor de cidadania. Mestres meus, entre os maiores, um Pequito Rebelo, um Fernando Amado, um Rolão Preto, prestaram homenagem ao espírito republicano (ou democrático) tantas vezes expresso ao longo da História contemporânea de Portugal. E a maior lição de Paiva Couceiro foi a sapientíssima suspensão de juízo com que enfrentou os destinos, olhos atentos à vontade popular.
Cada república, das quatro que se reclamam da verdade e do todo, cada república parece erguer-se com o esplendor e a glória da Monarquia. A nenhuma falta – dir-se-ia – a capacidade para se arvorar em totalidade. A bandeira, o emblema, o simples nome agitado ao vento – nada se prende na dimensão individual de cada um dos candidatos. Quase que o mundo é pequeno (como diria o padre António Vieira) para este humaníssimo desatino…
A sabedoria das nações, que é feita de tempo e espaço, mas também de carne, sangue vivo e espírito, saboreia (como lhe cumpre) essas multiformes tentativas de reconstruir a unidade, cada qual partindo de um canto estreme do real.
Como já alguém observou, a candidatura mais próxima, não propriamente do ideal da realeza mas da realeza como abstracção, é provavelmente a de Francisco Salgado Zenha, de tal modo ele surge independente da opinião, gerado (como candidato à Presidência) no mistério e numa espécie de fatalidade intrínseca; por outro, inpenitentemente circunscrito aos trâmites constitucionais, gravemente embalado no prestígio da lei; e, ainda, definido como sucessor. Não fora a estranha (alheia ao próprio candidato?) obsessão de se apresentar como fautor, por artes ignoradas, de uma Nova Democracia e de uma Nova República, e Salgado Zenha seria, de algum modo, o mais próximo avatar do rei constitucional. Falta-lhe, porém, embora “homem de palavra”, a verdade de tudo isto.
Aparentemente da mesma origem ideológica, mas a milhas de distância no que diz respeito à invenção da candidatura, Mário Soares aparece, com certeza, como o mais natural de todos os candidatos, não apenas efectivos mas possíveis. Ninguém como ele está e esteve sempre no interior do processo, quer na sua preparação longa e trabalhosa, quer na sua expressão, generosa e oscilante, quer ainda nos seus limites, exasperantes e ao mesmo tempo esperançosos. Na sua insegurança, dir-se-ia perpassar a promessa da segurança. Na sua bonomia facilmente caricaturável anda talvez a garantia de uma certa firmeza. Da imagem tradicional do rei, fica-se ao nível de Dom Luís. Mas já não é mau. O homem das mil promessas, desta vez nada promete. Esperava-se por ele: limita-se a aparecer. Vem de várias esquinas da História. Nem sempre se poderá louvar o que fez ou deixou fazer. Mas não há dúvida de que é Mário Soares. E já é alguma coisa.
Diogo Freitas do Amaral, o candidato evidente para quem já se esqueceu de que, há cerca de um ano, declarou rudemente que não seria candidato, é tão infinitamente superior a qualquer outro em ciência jurídica e em teoria do Estado que nem valeria a pena abrir um processo eleitoral se a questão das questões fosse, efectivamente, a da preparação universitária, a da visão geral das coisas, a da rapidez e segurança das respostas académicas a qualquer problema de administração pública. Presidente de todos os portugueses (com excepção dos Vizelenses), Freitas do Amaral passeia pelo País as suas lembranças vivas de grandes mortos. (Aqueles de quem fala e aqueles em quem se pensa.) Há, na sua campanha e sobretudo na sua candidatura, uma perfeição que também evoca a monarquia, mas uma monarquia a que se houvesse extraído, num golpe de altíssima e triste cirurgia, a marca do espontâneo, a origem popular, a simbologia. Inesperadamente, o candidato de tantos monárquicos sinceros (e de todos os não sinceros) adianta um projecto global de Nova República. Falta-lhe a Nova Democracia para ser igual a Zenha. Mas é, pessoalmente, um democrata rodeado, não direi de anti-democratas, mas de abundantes ademocratas. Discípulo de Raymond Aron, tem um modelo como estadista: Fontes Pereira de Melo. A monarquia constitucional parece prestes a reviver, com ele, uma experiência cinzenta, ameaçada de tensões brutais.
Ao lado ou em frente destas três candidaturas do stablishment, o nome e a voz, o sonho e a vontade de Maria de Lurdes Pintasilgo podem trazer, sem saudade, o melhor da tradição portuguesa e cristã. Rodeada de alguns que dela apenas compreendem o (aparente) antipartidarismo, ou a política um tanto ou quanto caseira, a verdade é que Lurdes Pintasilgo parece a única personalidade capaz de tocar em todos os temas escaldantes das ideologias contemporâneas com criatividade eficaz e sem obedecer a pautas registadas em manuais. Daí o espanto e o medo que provoca nas hostes comunistas oficiais: dir-se-ia que esta mulher cristã e desempoeirada se prepara para arrebatar ao PCP a parcela melhor dos seus militantes. O que ameaça, afinal, o seu belo projecto é exactamente a ideia singular (já de vários modos anotada por amigos e adversários) de fazer a partir da Presidência da República essa revolução.
Das quatro “repúblicas” que se perfilam no horizonte português e se olham e medem de soslaio, é certamente a última aquela que mais positivamente pode contribuir para o Portugal monárquico que o futuro exige. Mas esta candidata é intelectualmente contemporânea de Platão; para ela, Aristóteles ainda não nasceu…Distinguir entre Estado e sociedade civil, entre a pólis e a família (conforme muito oportunamente lhe observou Freitas do Amaral) parece estar fora do entendimento desta mulher sem dúvida inteligente e culta. Cabem também na monarquia quer a paz social que Mário Soares promete e directamente procura, quer a ideia clara de um verdadeiro Estado forte, alimentada e pregada por Freitas do Amaral, quer ainda a única invenção de Salgado Zenha – essa um tanto utópica transparência da administração pública, talvez necessária para acabar de vez com o regime republicano.
Nas vésperas de uma eleição que directamente, como militante monárquico, me não diz respeito, mas que não posso deixar de sentir e viver como português que antes de tudo sou e para quem estão mais próximos os republicanos portugueses que os monárquicos espanhóis ou ingleses, apenas desejo que os portugueses não tenham de sofrer muito mais desastres e desilusões antes de se convencerem, por um acto sereno de inteligência, que tudo quanto é autenticamente republicano tem lugar em monarquia.
HENRIQUE BARRILARO RUAS
(As Presidenciais - DN Opinião de 24 de Janeiro de 1986)