“(...) Persistia a distância nas ideias políticas. E Almeida Braga prosseguia com um poema melancólico e vencido, para terminar evocando-lhe os passeios que em Coimbra, nos dias depois das férias, demoradamente davam à roda do cais, contando-se os últimos trabalhos e planos. Almeida Braga acabava por se despedir, perguntando e exclamando: o teu casamento é dentro desta Primavera, ou deita ainda para diante? Como Portugal deve estar lindo!
Eis a resposta de Sardinha:
Queridíssimo Luís: escrevo-te em vinte e quatro de Abril, em vésperas do Senhor São Marcos, um dos quatro que disseram da vida de Jesus e padrinho dos bois e dos boieiros de toda a Cristandade. Amanhã, perto daqui, numa engalanada ermidinha, à hora da missa, por entre os fiéis, um novilho de dois anos entrará pela nave acima até ao altar – mor. “Entra, Marcos!” – lhe gritarão os mordomos da festa, que com varinhas o irão tangendo, que o animal se poluiria se as mãos humanas o tocassem. “Entra, Marcos!” E junto aos degraus do tabernáculo, com as hastes enastradas de fitas e de ervas de cheiro, a rês, em vez de tombar sob o cutelo sagrado, em nome da verdade receberá a bênção da Igreja e nos cornos se lhe cantará o Evangelho do dia.
“ Entra, Marcos!” E o engelhado Topsius que habitava dentro de mim acaba de descobrir que essa festa, que o Cristianismo conservou e santificou, tem raízes milenárias, descende da festa do touro que uma civilização pré-árica bronzífera, espalhou por toda a Europa. Mr. Homais rir-se-ia da ingénua solenidade e aproveitar-lhe-ia a origem para atacar a pobreza criadora do Cristianismo e a mentira das Religiões. Eu, como homem que estuda, solidifico com o facto a minha crença vendo nele um sinal claro dessa curva ascensional do homem primitivo para a Perfeição, que é Deus. “ Entra Marcos!” E hoje as ladainhas saem pelos campos – saíam – a rogar ao Céu pelo renovo primaveril, pela messe que se aformoseia, pelos frutos que despontam. Como Portugal estará lindo! – Exclamava na tua carta a tua nostalgia. – Como Portugal está lindo e como ele te manda saudades, meu amigo! Floresce o rosmaninho, a planta que soalha as igrejas em Quinta-Feira de Endoença e que, assistindo à cena do Calvário, perpetuou na sua austeríssima flor o sangue inocente do Cordeiro.
(...)
Para Sardinha, o retorno a Monforte reforçara-lhe a convicção de que a Verdade Portuguesa que buscava, estaria no povo e nas suas tradições; em vez da distância, a proximidade ao povo, em vez do desprezo altaneiro das elites letradas, o amor pelas coisas simples e o sentimento de um percurso até às raízes que era uma ascese até Ele.
Uma outra carta, datada de 30 de Dezembro de 1912, anunciava a Almeida Braga, por fim, de forma explícita, a sua total conversão ao catolicismo e ao monarquismo.
António Sardinha começa por saudá-lo e aos seus companheiros de exílio em palavras de intenso fervor: “Vós sois, no niilismo moral que nos abafa, o fermento sagrado que há-de levedar uma Pátria”. E logo adiante: “Recordas-te, Luís, de um dia me dizeres na tua casa, ao fim da jeropiga e entremeando um cavaco com a senhora Teresa (…), que o erro jacobino havia de morrer em mim, por incompatível com a sinceridade que eu lhe consagrava, e que os meus olhos se abririam para as verdades eternas? Pois, meu amigo, meu Irmão, leste fundo na minha alma e com alegria te conto a minha conversão à Monarquia e ao Catolicismo, – as únicas limitações que o homem, sem perda de dignidade e orgulho, pode ainda aceitar. E eu abençoo, eu abençoo esta República trágico-cómica que me vacinou a tempo pela lição da experiência, que livrou a minha existência dum desvio fatal".
(…)
Pela mesma altura, fez também Sardinha seguir para o Conde de Monsaraz, em Paris, a notícia da sua conversão. Do espólio de Sardinha responde-nos a letra do velho Conde numa breve, comovida e saudosa carta: “A sua generosa conversão, confessada com tanta nobreza de consciência, sensibilizou-nos profundamente”…
Alberto de Monsaraz, saindo do abatimento e descrença em que se prostrara ia para dois anos, recobra animado, respondendo-lhe:
“Já há tempos vinha percebendo, pelo modo de escrever, essa evolução que, pouco a pouco, se desenhava no teu espírito e na tua consciência de visionário desiludido. Nunca supus, porém, que, depois de haveres defendido tamanhos erros, tivesses a grandeza de ânimo de os enjeitar por completo. Esperava encontrar um desencantado, refugiando-se num cómodo silêncio, recurso último daquelas coerências que nunca torcem. Esta contrição alevantada e nobre, confesso, não contava com ela. Perdoa a um velho amigo a injustiça que involuntariamente te fazia. Já tinha uma vivíssima admiração pelo teu grande carácter, mas agora, se é possível, ainda o fico admirando mais. Vencer o amor-próprio é o maior triunfo duma consciência humana. Bem-haja a tua que a alcançou! As minhas esperanças no futuro da Pátria nunca esmorecem e estou crente de que a nossa velha tradição de grandeza não se perderá. Deus, que acima de tudo é grato, como pode consentir na irremediável agonia de um povo, que em oito séculos de existência e de fé, procurou sempre honrar o seu nome e alevantar o prestígio da sua Igreja. (…)”
In “Filhos de Ramires” de José Manuel Quintas
Alberto de Monsaraz, saindo do abatimento e descrença em que se prostrara ia para dois anos, recobra animado, respondendo-lhe:
“Já há tempos vinha percebendo, pelo modo de escrever, essa evolução que, pouco a pouco, se desenhava no teu espírito e na tua consciência de visionário desiludido. Nunca supus, porém, que, depois de haveres defendido tamanhos erros, tivesses a grandeza de ânimo de os enjeitar por completo. Esperava encontrar um desencantado, refugiando-se num cómodo silêncio, recurso último daquelas coerências que nunca torcem. Esta contrição alevantada e nobre, confesso, não contava com ela. Perdoa a um velho amigo a injustiça que involuntariamente te fazia. Já tinha uma vivíssima admiração pelo teu grande carácter, mas agora, se é possível, ainda o fico admirando mais. Vencer o amor-próprio é o maior triunfo duma consciência humana. Bem-haja a tua que a alcançou! As minhas esperanças no futuro da Pátria nunca esmorecem e estou crente de que a nossa velha tradição de grandeza não se perderá. Deus, que acima de tudo é grato, como pode consentir na irremediável agonia de um povo, que em oito séculos de existência e de fé, procurou sempre honrar o seu nome e alevantar o prestígio da sua Igreja. (…)”
In “Filhos de Ramires” de José Manuel Quintas
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